quinta-feira, 2 de maio de 2013

CENTENÁRIO

                Hoje era um dia especial: seu centésimo aniversário! O orgulho preenchia cada célula do seu corpo de velho. Poucos chegavam onde ele chegou: sucesso, família, saúde, felicidade. O último século, para ele, tinha sido repleto de coisas positivas.
                Um século, parecia tudo ter passado tão rápido. Parece que foi ontem que corria pelado por aquelas velhas ruas, ou que bebia sem pensar na ressaca do dia seguinte, que saia beijando todas nas festas, que resolvia aquelas velhas equações ouvindo rock muito alto. Besteira, pensou. Se tivesse continuado naquilo nunca teria chegado onde chegou.
- Hoje é o dia do vovô! – e sentiu aqueles finos braços ternos lhe apertarem.
- Parabéns, papai! – mais um abraço.
                Relutantemente conseguiu ficar sozinho no quarto. Despiu-se e rumou para a banheira. Colocou a água no máximo, e deixou seu corpo imergir naquele calor. O dia seria grande: pela manhã café com a família, seguido de culto, almoço com amigos, a tarde inauguraria sua fundação, depois receberia duas homenagens, um pequeno coquetel, uma entrevista, e finalmente o grande momento do dia: a festa do seu centenário.
- Apresse-se, senhor. Não quer chegar atrasado no culto.
                Ohh! Por deus, não podia começar o grande dia com um atraso. Não se pudesse evitar. Levantou-se, vestiu o terno e sentou-se a mesa. Comeu duas fatias de bolo, tragou alguns sorrisos, bebeu seu café preto e partiu junto aos seus. Era necessário agradecer pelo século de bênçãos.
                Deliciou-se com aquele banquete, como a carne estava macia! Sorriu cortando aquela fita, vieram as palmas. Mais duas placas para a estante no escritório, já lotada delas. Uma fina fatia de queijo e uma taça de champanhe. Sorrisos, “o segredo da vida é gostar do que se faz”, disse para o repórter. E de novo achava-se na sua banheira.
                Mais água quente, espuma, e cheiro de rosas no ar. Tinha pensado em uma música para o momento, mas preferiu o silêncio. Antes o fosse, todo o barulho da festa já estava no ar. O cheiro das frituras, o ir e vir dos garçons preparando tudo, a passagem do som. Afundou a cabeça na água.
                Por um instante tudo se calou. Havia apenas calor. Mais alguns segundos, porém, teve que emergir. Agora a soprano começava a testar alguns agudos no microfone. “Papai, mas é claro que o senhor deve fazer a festa em casa, quer melhor oportunidade de inaugurar o jardim novo?” Sim, é claro que seu filho tinha razão.
                Ficou nesta: mergulhos até quase perder a consciência naquele calor, então ar e barulho. Era um ciclo sem fim. Mas era tão cômodo por alguns instantes ter apenas líquido e calor em seu redor, sentiu estranhamente em casa. Pensou em fumar um charuto. “Mas o senhor não deve fumar, afinal quer ter uma vida longa e saudável não?” Sim, é claro que o médico tinha razão.
                A pele já estava enrugada. Queria ficar um pouco mais, mas tinha que sair. Pensou nas fotos, nas lembranças que ficariam daquela noite. Seria um memorável álbum de família. Lembrou da nora ao ver que a pele ainda estava enrugada. “Mas o senhor deve ir na dermatologista, não vai querer rugas nas fotos da sua festa né?” Sim, claro que a nora tinha razão.
                Olhou-se no espelho. A barba estava um pouco espetada. Espalhou rapidamente a espuma, passou a navalha afiada rente a pele. “Eu tenho pânico de lâminas.” “Mas o senhor deve enfrentar seus medos, o barbear com navalha fica perfeito.” “Mas me pedem para deixar a barba.” “O senhor fica mais sério sem ela.” E um dia teve coragem de passar o fio em sua face. Como o vermelho quente do sangue nunca veio acabou acostumando-se com a ideia.
                Piscou para o espelho. “Estou ficando maluco, por que lembrei-me disso?” Terminou o barbear. Olhou novamente para si, estava muito bem, para seus cem anos. Músculos rijos, cabelo penteado, pele até lisa, a única coisa que mudara era o brilho do olhar, eles estavam mais aguados, mas disfarçava com as lentes que acabara de colocar.
                Sentiu orgulho de todo o tempo que passara na academia desde a juventude. Mas estava na hora de se vestir. Colocou peça por peça, finalizando com a gravata. “Ei, Batista, pode dar um nó para mim?” “Mas é claro, Melo”. E ele saia correndo para a revista de uniforme. Até que um belo dia ele aprendeu a dar seu próprio nó na gravata. “Droga, mais uma lembrança idiota”.
- Papai, está tudo bem? Seus convidados estão começando a ficar impacientes sem sua presença.
                Olhou para o relógio. Os ponteiros dourados marcavam 23:58 minutos. “Que porra é essa? Fiquei 4 horas no banho”.
- Já vou, filho.
                Olhou mais uma vez para o espelho. “Narciso, não vou me quebrar. Pode ir”. “Que diabos, o espelho está falando comigo.” Balançou a cabeça, e rumou para a porta. Mas então ela veio, foi tão quente, tão confortável, sabe, quando a resposta de tudo que se procurou na vida vem em um insight. Era isso, agora tudo fazia sentido.
                Ele dirigiu-se rapidamente a gaveta, pegou a caneta. Já do lado da parede ele tirou o quadro, retirou o vidro. Precisava fazer isso rápido. Lá estava, ele, seu diploma e a caneta. Riscou profundamente o “bacharel em direito” e escreveu em cima “idiota”.
                    Sorriu. O relógio disparou a primeira das doze badaladas. “Parabéns pelos 100 anos de mentiras”, pensou. Abriu a porta e foi comemorar seu centenário. A noite seria mais longa que os cem anos anteriores...