quarta-feira, 30 de março de 2011

Tóxico

                Agora o cristal quebrou, e o ar, antes jasmíneo, jaz plúmbeo. O coração, que um dia já teve força para levar vida a todo o corpo, bombeia morfina. O cérebro, anestesiado, deseja a morte, mas, como castigo, ganha a imortalidade.
                Nada mais é como antes. Deste que ela se foi as portas do paraíso fecharam-se. Só resta este deserto, onde as nascentes jorram fel e as nuvens cospem fogo pelo céu púrpura.
                Respirar dói. Ver horroriza. Sentir queima. Ouvir agoniza. Provar, morte. Diluir o veneno não funcionou, pelo contrário, a química combinou dor e grito em um líquido escuro, concentrado de agonia.
                O silencio sussurra um nome em seu ouvido, os músculos tentam desenferrujar, sozinho, ele levanta. Vitória! Não, aquele bico afiado rasga sua carne podre. E ele cai, de volta ao berço. Por toda eternidade esperando...

terça-feira, 29 de março de 2011

Aeronaves

                Por muito tempo desejaram a vitória. Chegaram até a alcançá-la, mas foram traídos por um terreno infestado de escorpiões. Desta vez seria diferente, já era quase certo que juntariam o peso do troféu ao peso do mundo que, determinados, já carregavam.
                E novamente a traição, dolorosa. Foram cortadas em três pedaços, e cada um, numa embalagem de silencio, foi despachado em uma aeronave diferente. Ninguém sabia o destino, a única informação eram os pilotos: Desanimo, Silencio e Revolta.
                Reações não faltaram. Até tentaram, porém marionetes não tem o poder de cortar suas cordas. Alguns desistiram da glória olímpica, outros tentaram integrar-se àqueles que antes seriam seus rivais. Só uma coisa foi certa: as três aeronaves decolaram juntas.
                Enfrentaram sol, chuva, vento. No fundo o espírito era o mesmo, só uma poderia continuar voando ao final daquela semana. Sem bombas, sem mísseis nesta batalha, sequer querosene. As armas são espadas, bolas, passadas; o combustível, suor.
                Combatiam veementemente, animados pelo grito daqueles que não conheciam o passado e a leitura dos que silenciaram seu protesto. Todos viram, mais uma vez, que não podiam contra o sistema.
                A união, tão desejada, não saiu da mente do criador. Os pedaços só desejavam unir-se, ressoarem, juntos, pelo seu time. Não aprenderam, apesar de tudo, ainda iam dormir se achando grandes. Quantos vôos ainda serão necessários para enxergarem o sol?

segunda-feira, 28 de março de 2011

Faxineiro

                A refeição farta descansava no estomago. A diversão ficava por conta de escrever. O quarto encontrava-se tranquilo, brisa refrescante, música agradável e o som de dedos batendo às teclas, materializando ideias num mar desconhecido: uma página em branco.
                Tudo estava normal, até que ele entrou. Calça cinza, camisa laranja, luva e vassoura na mão. O chão, antes sujo, agora fica mais limpo. Ele limpava a sujeira que todos tinham feito.
                Olhar baixo, trabalhava em silencio, visivelmente parecia não querer ser notado. De repente um obstáculo, uma camisa camuflada numa escrivaninha. Ao que ele tira a luva e, cuidadosamente, a aconchega em um lugar que pode varrer sem encostar a vassoura nela.
                E faz seu serviço, e todos nem o percebem. Ninguém sabe seu nome, família, se ele está bem. Talvez sequer pensam nisso, estão muito ocupados para se lembrar que alguém limpa seu quarto. Encontrá-lo limpo é tão natural que talvez alguns até vejam como uma mágica deste lugar.
                Pena que não existam faxineiros da vida. Como seria confortável adormecer sabendo que alguém viria durante o sono e, silenciosamente, limparia nossos erros.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Correspondência

À minha querida mãe,
                Oi mãe! Fale comigo! Tenho me sentido tão só desde que a senhora se foi. Venha, seja lá de onde estiver, e acalente meu corpo frio com seu abraço morno. Abra meus olhos, mãe, eles estão fechados pela cola das inverdades.
                Há tanta coisa que eu não lhe disse: tenho fumado às escondidas, tenho saído com os amigos errados, tenho quebrado todas as regras do mundo que a senhora tanto amava. Talvez mãe, se estivesse viva, envergonhar-se-ia de mim.
                Estou com saudades daquele chocolate frio com bolo recém assado, daquele arroz com feijão que só a senhora sabe temperar, daqueles filmes com pipocas amanteigadas, daquela corrida no campo em dia de chuva.
                Cresci, querida mãe. Talvez até já não tenha sofrido todas as dores do mundo. Mas a pior eu já sofri: a intransitividade de um amor. Sofri tanto que talvez nem mais a senhora consiga ver o brilho pueril em meus aguados olhos azuis.
                Por que foi embora tão cedo mãe? O jogador de dados quebrou-me com este cheque-mate. Eu precisava do seu apoio quando conheci outros lábios, experimentei outros corpos. Mas não, levei sozinho todas as palmadas do mundo, mestre enfurecido armado de palmatória.
                Mãe, pede para ele para voltar. Talvez ele seja bonzinho e deixe. Mas, caso ele negue, peça para me levar. Sei que ele não quer manchar a fama de bom moço e, ademais, quem negaria um pedido seu, mãezinha?
                Tenho que parar agora mãe, diluir a pouca tinta com toda essa água salgada já não está funcionando, a tinta falha no papel mole está criando uma massa horrenda e grossa, a vela está acabando e o galo estridente já está cantando.
                Eu te amo, mamãezinha, esteja onde estiver!
Neverland, 34 brumário, 0OX5
Com amor,
Seu filho

quinta-feira, 24 de março de 2011

Manifesto

               Eu agora quero gritar para o mundo. Cansei dessa lamúria silenciosa! Eu, que ando às escondidas, fazendo da minha desgraça minha vida. Eu, que nem mais chorar consigo, que acumulo lágrimas numa bolsa tóxica de pranto.
                Do seu baile de máscara já solei todas as valsas, transpirei as músicas e regurgitei o vinho. Aquelas mesmas vozes, mesmos sermões, mesmos guardanapos, de nada mais me adiantam.
                Vou rasgar todos os panos, sinestesiar todos os cheiros, gostos e sons. Erigirei uma estátua multifacetada, e em cada face uma mentira. E jogá-la-ei aos pombos, para que possam defecar suas ânsias.
                Essa calmaria vulcânica prestes a explodir, o certo e o errado vivendo em equilíbrio. Basta! Que venham os piores perfumes, os mais potentes venenos, os mais belos feios rostos, os mais agudos sons. Que venha o caos!
                E, assim, quem sabe exausto, quem sabe em êxtase sanguinolento de dor, todos os palcos serão erguidos e todas as orquestras soarão uníssimas, cada vez mais alto, alTO, ALTO!

sexta-feira, 18 de março de 2011

Farda

          Estou farto de toda essa artificialidade, de meninos querendo se achar grandes homens, desse grande teatro que se desenrola tão naturalmente quanto o tiquetaquear do relógio. Ah, todas essas mentiras, todos esses papéis, mas no fundo só uma verdade: seus princípios.
         
Estou farto dos grandes comportarem-se como pequenos, dessa mentalidade fechada, desse jogo de poder onde o fraco sempre se rende perante o mais forte. Aquele que se faz de furacão na verdade talvez não passe de uma gota de chuva quando está só, com suas idéias.
         
Estou farto de todas essas risadas coletivas, de todas essas lágrimas, dessa convivência forçada.  Todos são um, belo, mas somente quando se convém. São como pássaros, que precisam um do outro para migrar, mas guardam para si o mistério e a beleza do vôo de cada um.
         
Estou farto de todo esse ódio, de todas essas perseguições, uma imparidade sem par. Se todos buscam o mesmo objetivo não há razão para tratarem-se como caça e caçador. Um ano, para a eterna dança cósmica, não vale sequer um segundo da vida daquele que se acha um gigante por ter iniciado a caminhada antes.
        
Estou farto de toda essa farda, do peso desse céu de anil, e de todo esse azul. Prepotência é se achar dono dos céus quando sequer alcançaram o sonho de Ícaro. Ainda há muito para se viver, há muito por que morrer. Avancemos sempre unidos, mas antes livremo-nos do mal. Amém.

sábado, 12 de março de 2011

Four Days to the Wolves

Era algo religioso: uma festa que marcava o quarentena de abstinência de carne.  Não mais, porém, foi corrompida. É agora a festa da luxúria, de carne rija em fendas úmidas, de banhar-se no suor do álcool, expor o corpo que construiu seguindo as regras do último periódico, esquecer-se de si, aliás, mostrar-se no lado mais animal: carne movida por instinto.
                Pobre criança. Não conhecia nada disso. Simplesmente saiu em uma sexta. A imagem de um anjo: pele clara, cabelos loiros, olhos azuis. Tão logo a viu, sentiu-se atraído. Um lobo atrás de uma ovelha. Vestiu o mais gentil dos sorrisos, pegou a capa de fala mansa e foi até ela.
                “Mamãe não me deixa falar com estranhos”, tentou fugir. Foi cativada por aquele bom velhinho. Aceitou o convite e entrou no templo de duas torres. Atrás do altar a poltrona. O lobo parou ali, despindo-se da bondade. A criança assustou, mas foi mordida pela curiosidade. “Vem, é como sorvete!”
                Os sinos badalaram, falsa tentativa de reunir os fiéis. Estavam todos muitos ocupados: a banda tocava, Pierrot e Colombina dançavam, serpentinas voavam. Um anjo perdia suas assas, mas a única preocupação era a chuva que caia, poxa, vai estragar a festa. Sorte do lobo, o dízimo havia consertado a goteira.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Redemption

Tudo que eu queria era esquecê-la.  Esquecer do verde de seus olhos, do castanho ondulado de seus cabelos, do brilho de seu olhar, do tom alvo de sua pele. Queria perder. Perder as curvas de seu corpo, o timbre de sua voz, a sensação suave de seu toque. Poderia morrer queimado, assim definitivamente não desejaria nenhuma fonte de calor, nem mesmo o calor morno de seu corpo.
Já queimei fotos, cartas, apaguei conversas. Já jurei, em vão, nunca mais pensar em você. Ah... pena que eu não posso mutilar meu cérebro, e arrancar dele todas as memórias do que já passamos juntos.  Foram tantas promessas, declarações, suspiros, gritos, lágrimas. Passado. Um museu de estátuas de gelo.
Já tentei encontrar o gosto de seus lábios em outros. Busquei o calor do seu corpo ardente em frígidos corpos sedentos apenas por prazer. Brinquei com marionetes na busca pelo seu abraço. Confundi amizade com amor, na tentativa inútil de preencher meu vazio. Meu infinito particular.
                A culpa foi minha. A brilhante idéia que ou eu teria você ou eu teria uma aspiração ao céu. Não podia desistir do céu. Como estava errado. Posso até ter ganhado os ares, mas de que adianta quando não se tem mais um lugar seguro para pousar?
                Eu realmente queria esquecê-la. Não pense que eu estou satisfeito. Não ache que eu quero impressioná-la. Apenas gostaria de um último desejo: diga-me, diretamente, que já era. Que me odeia. Ou o que for. Por que você nunca me concede isto? Never it`s too late for redemption.