domingo, 26 de outubro de 2014

SER

Está decidido: eu não sou. Sou uma fantasia coletiva que vive na minha mente e na de todos que me conhecem. Podem me chamar de louco, me internar, me dopar de tarja preta, eu insisto: eu não sou. Afinal, o que é necessário para ser? Um aglomerado de moléculas químicas orgânicas? Uma alma? Um amor? Uma desilusão? Acho que tenho, ou melhor, já tive isso tudo. Mas hoje eu não tenho mais. Hoje eu sou um fantasma que vaga pelas esquinas fugindo daqueles que não sei como reagiria ao cruzar. Sou um vendedor de sonhos, regados a pesadelos, plantados numa mente angustiada e fertilizados com desejos profundos. Hoje eu tenho colocado meus átomos em risco, fazendo-os interagir com outras moléculas alheias à minha vontade. Tenho falado as coisas que sempre quis, e feito o que tenho vontade. E tenho pagado caro por tudo isso! Mas ainda assim tenho festejado cada ruga e cada novo tom de preto que minhas olheiras atingem: eles me lembram quem eu sou, e como a vida tem sido. Tenho também esperado telefonemas que não vem, e assistido alguns sins transformarem-se em nãos. E tenho tentado não deixar isso me afetar tanto, embora as vezes sem sucesso. Aliás, o sucesso tem me andado em corda bamba, as vezes sorrindo para mim, as vezes rindo de mim como um louco. Mas, bem lá no fundo, eu ainda não sou o que eu queria ser. Eu sou apenas o suficiente para mim. Para você eu sempre serei o que você levou de mim, e, para mim, você sempre será o que deixou perdido no meio de toda essa bagunça. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

ROMANCE EM DOZE ATOS

Trilha sonora: Dalida - Bang Bang

ATO I
Protagonista I: Em casa, se arrumando.
Protagonista II: Entrando no táxi.

ATO II
Protagonista I: “Maldita fila!”
Protagonista II: Acabou de entrar na festa.

ATO III
Protagonista I: “Entrei, finalmente!”
Protagonista II: “Mais uma dose, por favor!”

ATO IV
Os dois protagonistas estão dançando.

ATO V
Os dois protagonistas trocam olhares e sorrisos.

ATO VI
Um beijo.

ATO VII
Ali, naquele sofá...

ATO VIII
Protagonista I: “Vamos para um lugar mais isolado?”
Protagonista II: “Claro”

ATO IX
Gemidos e arranhões...

ATO X
Protagonista I: “Vamos marcar algo dia desses?”
Protagonista II: “Vamos”

ATO XI
Os dois protagonistas trocam contatos.

ATO FINAL
Protagonista I: Entrando no táxi.
Protagonista II: Em casa, se arrumando.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

VITRINE

             Suzy acordou com o cheiro adocicado de cookies misturado com o cheiro pontudo dos pinheiros do lado de fora da janela. Esfregou seus pequenos olhinhos cinzas enquanto jogava para o lado pequenos pedaços de sonhos e olhou para a luz esbranquiçada do lado de fora. Tinha nevado durante a noite, o gramado onde costumava brincar estava coberto por uma camada fofa de lã branca. Mal podia esperar para estar lá fora fazendo bonecos de neve com Tobby, seu fiel amigo de quatro patas e focinho vermelho.
                Tirou seu pijama e colocou uma roupa quente e confortável, calçou as luvas, as botas e desceu para a cozinha. Sua mãe a recebeu com um sorriso, uma caneca de leite e uma bandeja de cookies recém saídos do forno. Seu pai a recebeu com um cafuné, e um convite para ir com ele comprar seu presente de natal. Aquilo a fez lembrar-se do tempo que ainda acreditava em Papai Noel, e de como sempre acabava adormecendo enquanto esperava o bom velhinho em frente a lareira.
                Mas a magia do natal ainda estava ali. Bastava olhar para o pequeno pinheiro adornado no canto esquerdo da sala, repleto de bolas vermelhas, sinos, luzes e fotos da família. O rádio da cozinha também emanava aquele refrão “Jingle bells, jingle Bells... Jingle all the way... Oh, what fun it is to ride... In a one horse open sleigh”. Suzy amava o natal, mas sempre tinha dificuldades em escolher um presente apenas, havia tantos que a interessavam. Se pudesse ficaria com todos, mas nem sempre conseguia.
                Após o café foi com seu pai para a loja de brinquedos. Ainda estava levemente entorpecida pela quantidade de cookies e canecas de leite que havia tomado, mas no geral estava ansiosa por aquele momento. Andou com o pai pelos corredores da loja, analisando os brinquedos ali disponíveis: ursos, jogos de tabuleiro, bonecas... Havia dado um ou outro sorriso ao ver determinado brinquedo, mas nada ainda tinha atraído toda a sua atenção. Já estava quase desistindo quando a viu no final do corredor.
                Seus olhinhos cinzas brilharam tanto que chegaram a um azul pálido. Puxou o sobretudo do pai e disse “É aquela, papai!”. No meio da vitrine estava uma boneca, solitária, acima das demais, quase esquecida ali pelas muitas crianças que passavam. Não era exatamente graciosa para uma boneca, na verdade o pai não entendeu por que aquela boneca fora colocada ali. Mas o seu lado macabro é que chamou atenção de Suzy. “Nós seremos uma família perfeita, papai: eu, ela e Tobby!”. O pai sorriu e foi pagar pela boneca, agora era só levar a filha para casa e ir comprar as bebidas para a ceia, que era o que realmente importava.
                Ao chegar em casa Suzy chamou Tobby e foi brincar na neve. Em algum momento da tarde correu na geladeira para pegar uma cenoura, roubou o cachecol da mãe pendurado na porta e pegou alguns gravetos pelo chão do quintal. Após certo esforço, e com as mãozinhas quase congelando, estava pronto o Senhor Noel. Ficou ali parada ao lado dele, com Tobby aquecendo seu colo. Três testemunhas mudas do por do sol, que aos poucos tingia a neve de um amarelo dourado. Quando a lua sorriu para eles a mãe lhe chamou para tomar banho.
                Toda aquela água morna a fez perceber que estava com sono. Assim, após a tigela de sopa quente de legumes adormeceu em sua cama. A noite passou num borrão, trazendo-lhe sonhos leves e agitados. Mas a manhã seria manhã de natal, e ela sabia que acordaria com o cheiro não de cookies, mas de panetone e carnes assando. Acordou, seus cinzentos olhos vítreos deixavam sua visão embaçada. Sentiu ao seu lado suas companheiras, embora não pudesse ver mais que suas sombras. Todas com a mesma roupa, todas que sempre estavam ali para as crianças escolherem.
                 Mas ela dera um pouco de sorte, pois estava exposta um pouco acima das demais. Na verdade ela era o centro da vitrine. Todas as crianças estavam ali para escolherem seus brinquedos, e ela dava o máximo de si para ser escolhida por alguém. Não queria passar o natal sozinha, por isso sempre se assegurava de ser escolhida por alguma criança que lhe chamasse a atenção, ou, quem sabe, por algum pai que passava ali correndo para comprar o presente da filha, embora ainda preferisse as crianças.
                A rua estava lotada, algumas velhas caras que sempre passavam ali cobiçando aqueles brinquedos, algumas novas caras que nunca havia visto. Por todos os cantos a música natalina se misturava com os sinos e o coro da igrejinha ao lado. Ao seu lado, via carrinhos sendo levados por meninos risonhos, jogos de tabuleiros sendo carregados por pequenas crianças com óculos redondos de lentes grossas, bonecas sendo levadas por meninas não tão pequenas assim, ursinhos de pelúcia sendo abraçados por garotos e garotas com sardinhas. Tudo estava correndo tão bem como sempre.
                Mas de repente a viu, aquela menininha gordinha que vinha em sua direção. Olhinhos cinza brilhando, de mãos dadas com um senhor carrancudo com um sobretudo preto. Seu coração de boneca disparou, queria ser levada para casa por aquela menininha. Por um breve instante excitou se seria ela a escolhida, afinal há muito estava ali exposta a olhares e avaliações. Mas a garotinha apontou para ela e logo o pai, com uma cara de alívio, pagou por ela. Seu mundo então ficou escuro quando a embrulharam com aquele papel brilhante, mas logo mais poderia brincar para valer. Assim, adormeceu aguardando pela diversão.
                O natal passou. Abriu seus olhinhos, seus braços rígidos pelo sono. Tudo estava estranhamente silencioso. Tobby, como sempre, veio para o seu lado com aquele focinho vermelho gelado e lambeu seu rosto. Eram uma família feliz, as duas e Tobby. O pai e a mãe talvez nem tanto, eles não gostavam muito que olhassem pela cortina, era melhor pensarem que eram perfeitos. Mas nada disso as atingia, elas se davam tão bem. Porém, ela desenvolvia seu plano macabro à medida que os dias passavam. Seria sua vingança silenciosa...

                Uma semana após o ano novo sentiu que era a hora certa. A casa estava dormindo quando ela se levantou, afastou-se dos demais brinquedos com que dormia e a levou pela mão. As duas logo estavam sozinhas na cozinha. Então ela pegou a faca e enfiou naquela barriga macia, enfiou mais uma, duas, três vezes. Estava feito. Deixou a faca de lado, passou por Tobby que ainda dormia e saiu de casa. No dia seguinte, pela manhã, a casa acordou com o grito dos pais ao verem Suzy morta na cozinha. Enquanto isso, do outro lado da cidade, novamente detrás daquela vitrine, a boneca sorria para mais uma garotinha... 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

NÃO DITO

Há algo não vivo vivendo em meu peito
Expulsando essas palavras pelos olhos
Silencioso, calado e sem jeito
Mirando de dentro desses dentes falhos

Há algo não dito escrito em meus lábios
Ouvindo esses versos pelos pêlos
Gelado, vazio e mui inglório
Soando veneno em veios anômalos

É que quando vi o sol adormeci
E quando vi a lua despertei
Deitei c’as estrelas e sonhei

Alto, voando cada vez mais alto
E de repente num assalto
Ousei respirar, emudeci.

PARA [NÃO] PENSAR EM VOCÊ

Hoje eu acordei e decidi não pensar mais em você
Eu abri a janela com este forte propósito em mente
Vi pássaros, vi o sol, e vi que a vida segue em frente
E que a vida de certa forma pode ser mais doce

Mas aquela caneca me lembrou daquele café
E aquela toalha me lembrou daquele banho
Ri um pouco, sei que ainda tenho muito tempo
E não quero mais pensar em você por hoje

O dia tem 24 horas, eu posso dormir por oito
Se eu te esquecer por doze sobram só mais quatro
Quatro horas e três linhas de um soneto

Mas, ei, corra que o soneto está acabando!
E eu ainda tenho doze horas e um verso pela frente
Quem sabe o dia acabe tão rápido quanto este soneto... 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

FORTE

Não sabia exatamente como havia chegado até ali:  tantas portas o deixaram ali, e os machucados ao chocar-se em tantas outras fechadas o lembravam que era como impossível refazer todo o caminho. Na verdade ele não sabia sequer o que estava sentindo. Havia mágoa, e como havia mágoa. Um gosto de biles inundava a garganta à mínima menção daquele nome. Mas havia amor. Um sorriso por uma mera lembrança, um amargo sorriso de rasgar o coração. Seria esse o preço a se pagar pelos seus erros? Algumas bocas custam caro, e um beijo pode sair mais pesado que o pote de ouro no fim do arco-íris. Gemidos então, arranhões. São apenas dor e sofrimento - maquiados perfeitamente de prazer naquela hora, aquela maldita hora em que os olhos se fecham e a respiração acelera. Mas já tinha feito a aposta. Sabe-se lá por que motivos, talvez por instinto, talvez por luxúria. E, eventualmente, sabia que podia perder. Na verdade tinha perdido, a certeza da perda assolava-o mais forte a cada noite. Seu coração era um pantomineiro dilacerado a contar bromas para uma plateia alegre. Porém, ele tinha que ser forte. Forte como uma rocha, mais forte que o esmalte amarelado dos dentes que lhe sorriam. Mais forte que as palmas que soavam da plateia após seu espetáculo. Podia chorar, lágrimas arrancavam risos e mais barulhos, seus expectadores eram cegos demais para perceberem seu pranto, lágrimas eram parte de suas diversões ocas. Sabia que teria sido mais fácil sumir, perder-se na ilusão e fechar os olhos para a vida. Só que era tarde demais para voltar atrás, havia se perdido nas curvas do caminho, e retas eram apenas aqueles pontos onde saia correndo tentando fugir do que estava por vir. O que estava por vir? O vazio, perder-se no vazio. Mas antes tinha mais uma porta aberta em sua frente, e mais uma, e, sem perceber, cruzou-as, seguiu adiante. Era isso: ser forte ao expiar seus erros, sorrir ao ver a próxima porta fechada, entrar sem pensar nas abertas... não há volta!