Vistos etc...
Zé
Ninguém, qualificado alhures, opôs Ação Anulatória com Obrigação de Fazer em
face da Empresa Vida Longa S/A, visando devolução de produto por excesso de
perenidade.
Alega
o embargante que adquirira o referido bem sem consciência de vontade, em
estágio no qual sequer eram-lhe reconhecidos os direitos de nascituro. Diz
também ter sofrido coação das células responsáveis pela fecundação, a saber
óvulo, XX, de nome desconhecido e espermatozóide, XY, também de nome
desconhecido.
O
embargante suscita, por fim, sua boa fé na convivência com o produto entregue
na realização do negócio jurídico entre as células supracitadas, entretanto diz
que ela causa-lhe notórios prejuízos. Requer, então, anulação do contrato entre
as células, com consequente devolução imediata do produto e a produção de todas
as provas de direito cabíveis.
Instada
a se manifestar, a embargada opôs resistência ao pleito inicial, alegando não
ser de sua competência tal feito. Diz também não ser responsável pelo produto
entregue, visto que o contrato supra deu-se de maneira natural e espontânea, e
tampouco ser responsável pelo modo como o embargante convive com o produto.
É o relatório. Fundamento e decido.
Trata-se
de ação anulatória com devolução de fazer em que o embargante persegue a
devolução de produto adquirido em estado de não consciência.
Em
preliminar faço análise da necessidade de provas. Não há, em todo o ordenamento
jurídico, lei que rege a “vida”, em sua
qualidade apenas de vida. O modo como o embargante vive a sua vida, as suas
desavenças e suas desgraças diárias não são de competência deste tribunal,
tampouco deste país. De minimis non curat
praetor.
São
consequências do acaso do destino, de uma lei natural proveniente do mais
asqueroso sistema pré-jurídico. São determinantes da sorte, e de seu par, o
azar. Este tribunal visa garantir segurança jurídica, e o embargante, Zé
Ninguém, a possui amplamente, prova disto é o ajuizamento desta lide e sua
consequente discussão.
Em
relação ao contrato firmado entre as células supracitadas não há possibilidade
de anulamento, tal negócio jurídico deu-se, ad
ovo, dentro das características legais necessárias. Ademais, a relação
contratual não pode ser revogada por pedido de terceiros sem relação com os
contratantes. Cabe ressaltar que as células supra cumprem seu papel social
perfeitamente, inexistindo, nos autos, prova cabível ou circunstancia que leve
a anulação do referido.
Parto,
agora, para analise do pedido de devolução do bem adquirido. A alegação do embargante
que sua posse deu-se em momento que não tinha consciência jurídica não deve ser
considerada. A posse do bem se deu, como determinam as relações de direito
civil, quando de seu nascimento com vida.
A
condição de nascituro não é impedimento para a posse, visto que o embargante não
possuía posse do bem durante este estagio de vida. Tendo nascido com vida,
adquiriu personalidade jurídica, e, com ela, a capacidade para adquirir
direitos e deveres. A posse do bem é, pois, legal.
Quanto
à coação supostamente sofrida pelo embargante, considero-a nula. Apesar do
ordenamento jurídico proteger a condição de nascituro, ela depende da
fecundação e, a partir de então, pode se considerar que há um individuo com
direitos protegidos, embora sem personalidade. Não havia, pois, a existência do
individuo Zé Ninguém na realização do contrato. Evidentemente, se o individuo
não existia, ele não poderia ter sido coagido.
Aceitar o argumento de possível coação
levar-nos-ia ao absurdo de considerar que todas as pessoas são coagidas no
momento da fecundação nos diversos aspectos de sua existência, como classe
social, cor. A fecundação seria como uma loteria natural, e haveria uma
desigualdade intrínseca a toda a sociedade.
Sabidamente
isto não ocorre. Vivemos em uma sociedade onde todos têm direitos iguais, e o
fato do embargante não ter obtido sucesso na vida cabe exclusivamente a ele e a
suas atitudes durante sua vida. As coações pré-existentes à vida estão, pois,
expurgadas do ordenamento social e jurídico, como o casamento encomendado dos
tempos coloniais.
A
boa fé do embargante em relação ao produto é uma obrigação sua, que até poderia
ser usada como argumento, mas entendo incabível a lide. É notório que o
embargante, que já alega prejuízos tratando o bem com boa-fé, os teria em maior
quantidade caso agisse de má-fé.
Agir
com boa-fé é, pois, um benefício ao autor e a escolha mais racional possível de
sua parte. Entendo, aqui, uma analogia ao suposto inverso do princípio nemo turpitudinem suam allegare potest.
Deixo claro que tal entendimento dá-se apenas no caso em lide, pelos atributos
a mim concedidos não vejo problema nesta pequena inversão. Iura novit curia.
Em
relação a manifestação da embargada, entendo plausível o argumento de não ser
de competência o anulação pedido. Deveria o embargado ter movido sua ação
contra a Empresa Morte Rápida S/A, entretanto não o fez. É impossível à
embargada aceitar a devolução do produto entregue. Impossibilium nulla est obligatio.
Aceito
o argumento que a embargada não é responsável pelo produto entregue, visto que
a obrigação jurídica da empresa acabou no nascimento. O produto foi entregue em
perfeito estado, e qualquer alegação a garantia é infundada, visto clausula
contratual passar tal obrigação para profissionais médicos.
Quanto
ao modo como o embargante utiliza seu produto, como supracitado, é algo a ser
resolvido pelo embargante. O Estado garante-lhe o necessário e todos os seus
direitos. Seus revezes são inócuos a ação estatal. Dura lex, sed lex.
POR
ISSO, pelas competências a mim estabelecidas e pelos argumentos e princípios supracitados,
INDEFIRO o pedido de Anulação Contratual, bem como de devolução imediata do
bem.
CONDENO
o tutor do embargante a multa de 10000 unidades monetárias desta federação, por
litigância de má fé ao alegar Obrigação de Fazer da embargada quando esta não existia.
CONDENO
também o autor do processo ao pagamento das custas processuais e honorários sucumbenciais,
que fixo no valor de suas pequenas felicidades diárias, visto ser este o único
bem que o embargante ainda tem para oferecer.
TRANSLADE
cópia desta sentença para os meios publicitários, para que todos os cidadãos
desta Federação tomem conhecimento de seus termos.
PUBLIQUE-SE.
REGISTRE-SE. INTIMEM-SE.
Lugar qualquer, em uma data qualquer.
DESTINO
Juíz de Direito
* O autor ressalta que se trata de um texto fictício. Os argumentos utilizados não exprimem necessariamente a
opinião do autor.