terça-feira, 19 de julho de 2011

Fantasmas

                Ele olhou-se no espelho: os primeiros fios brancos começavam a surgir; a pele, antes lisa e brilhante, enrugada e flácida; os olhos não tinham mais aquele brilho de outrora, hoje estavam de um azul aguado. Até o espelho demonstrava sinais do tempo: manchas negras destacavam-se no fundo prateado, a moldura começava a ficar frouxa. A mão tremula apertou o tubo do creme de barbear, espalhou no rosto e começou o ritual que repetia todas as manhãs desde os 15 anos: lado esquerdo, lado direito, queixo, bigode. Um corte, e o vermelho brilha entre o branco. Ele ainda estava vivo.
                Lentamente tira o pijama xadrez, e resolve sentir a liberdade com que viera ao mundo. Anda pela casa. Tudo ali lembrava a velhice. O tapete de azul ficara branco, os alumínios da cozinha estavam manchadas, os copos estavam engordurados, as plantas morreram, a cachorra estava cega, a pilha de jornal era uma constante que só aumentava. Aqueles jornais lhe traziam a dura realidade: seqüestros, morte, violência, poluição, o mundo não era o mesmo onde ele crescera.
                Repentinamente um par de olhos verdes o encara da parede. Aquele era o único pedaço de felicidade de sua vida, uma felicidade que brilhou em sua juventude, entre juras de amor eterno, findadas em três primaveras. Desde então não encontrou outros olhos, não encontrou mais calor. Os olhos verdes foram seu único amor. Não tinha filhos, perdera os pais. Restaram os vizinhos, que às vezes apareciam para o poker à noite, ou com um prato da torta saborosa. E, no armário, guardava a pesada farda azul.
                Abriu a janela, mas a lufada de vento quente e fumacento logo o fez fechá-la. Dirigiu-se a copa, serviu-se de um copo e encantou-se com o delicioso beijo dourado da moça de 18 anos saída daquela garrafa. A vida ensinara-lhe alguns prazeres. Nisso ele não poupara esforços, do drink no Moulin Rouge com a mais bela das moças ali presente até o bungee jump na Nova Zelândia. Tivera uma vida cheia, que, dentre outras coisas, rendeu-lhe o peso das medalhas em sua beca guardada no armário.
                A tosse veio, tinha chegado a hora. Passou por todos os cômodos da casa, como em um cortejo fúnebre era seguido pelos fantasmas de cada um dos salões: a cozinheira negra da cozinha, a moça de vermelho do seu quarto, a alemã do peito pequeno do banheiro, a ruiva da sala de jogos, a polaca do corredor, a professora loira da biblioteca e, o mais cruel de todos, os olhos verdes da sala. Foi até seu quarto e vestiu sua farda, a cada peça o incomodo da vida vazia aumentava mais. Até colocar a platina de quatro estrelas, completando o peso que era demais para seus fracos ombros de velho.
                Pegou um charuto cubano, acendeu-o e dirigiu-se ao banheiro. O Requiem de Mozart era um conforto a mais para seus cansados ouvidos. Encheu a banheira, testou a temperatura e entrou. A água quente confortava um pouco a dolorida tosse, ao mesmo tempo aumentada pela fumaça do charuto. Sua vida agora resumia-se naquela chama vermelha, um olho do demônio na escuridão quente do banheiro, em meio aos acordes de violino e às exaltações do coro.
                Lembrou-se da infância, dos poucos amigos, das noites regadas a álcool e sexo, das vitórias no ar, das promoções (que sempre vinham com um exercito de ombros invejosos). Havia pensado em algo mais doloroso, estava enganado. Era limpo e quente. Contou uma a uma as medalhas que portava no peito, todas as glórias da sua vida estavam ali resumidas. O cortejo fantasmagórico que o acompanhava estava cada vez mais real. A chama do charuto já chegava ao fim. Mais uma tossida, e a mão ficou cheia de muco vermelho.
                Os brilhantes olhos verdes oferecem-lhe um lenço. Estendeu sua fraca mão, tremula ao tentar romper a distancia. Conseguiu tocar aquela pele pálida. Choque. Não existia o calor de suas lembranças juvenis, a maciez aveludada. Ele toca um frio vazio. O contato não he trouxera o momento de felicidade ansiado. Dá a última tragada no cigarro, o peito enche-se de fumaça quente, pesada. Encara as duas esmeraldas a sua frente e fecha os olhos na esperança de voltar a sentir o calor naquela pele pálida. A chama do charuto apaga. A dor acaba.

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