quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

SENTENÇA*


Vistos etc...
                               
                                  Zé Ninguém, qualificado alhures, opôs Ação Anulatória com Obrigação de Fazer em face da Empresa Vida Longa S/A, visando devolução de produto por excesso de perenidade.

                               Alega o embargante que adquirira o referido bem sem consciência de vontade, em estágio no qual sequer eram-lhe reconhecidos os direitos de nascituro. Diz também ter sofrido coação das células responsáveis pela fecundação, a saber óvulo, XX, de nome desconhecido e espermatozóide, XY, também de nome desconhecido.

                               O embargante suscita, por fim, sua boa fé na convivência com o produto entregue na realização do negócio jurídico entre as células supracitadas, entretanto diz que ela causa-lhe notórios prejuízos. Requer, então, anulação do contrato entre as células, com consequente devolução imediata do produto e a produção de todas as provas de direito cabíveis.

                               Instada a se manifestar, a embargada opôs resistência ao pleito inicial, alegando não ser de sua competência tal feito. Diz também não ser responsável pelo produto entregue, visto que o contrato supra deu-se de maneira natural e espontânea, e tampouco ser responsável pelo modo como o embargante convive com o produto.

                               É o relatório. Fundamento e decido.

                           Trata-se de ação anulatória com devolução de fazer em que o embargante persegue a devolução de produto adquirido em estado de não consciência.

                               Em preliminar faço análise da necessidade de provas. Não há, em todo o ordenamento jurídico, lei que rege a “vida”,  em sua qualidade apenas de vida. O modo como o embargante vive a sua vida, as suas desavenças e suas desgraças diárias não são de competência deste tribunal, tampouco deste país. De minimis non curat praetor.

                               São consequências do acaso do destino, de uma lei natural proveniente do mais asqueroso sistema pré-jurídico. São determinantes da sorte, e de seu par, o azar. Este tribunal visa garantir segurança jurídica, e o embargante, Zé Ninguém, a possui amplamente, prova disto é o ajuizamento desta lide e sua consequente discussão.

                               Em relação ao contrato firmado entre as células supracitadas não há possibilidade de anulamento, tal negócio jurídico deu-se, ad ovo, dentro das características legais necessárias. Ademais, a relação contratual não pode ser revogada por pedido de terceiros sem relação com os contratantes. Cabe ressaltar que as células supra cumprem seu papel social perfeitamente, inexistindo, nos autos, prova cabível ou circunstancia que leve a anulação do referido.

                               Parto, agora, para analise do pedido de devolução do bem adquirido. A alegação do embargante que sua posse deu-se em momento que não tinha consciência jurídica não deve ser considerada. A posse do bem se deu, como determinam as relações de direito civil, quando de seu nascimento com vida.

                               A condição de nascituro não é impedimento para a posse, visto que o embargante não possuía posse do bem durante este estagio de vida. Tendo nascido com vida, adquiriu personalidade jurídica, e, com ela, a capacidade para adquirir direitos e deveres. A posse do bem é, pois, legal.

                               Quanto à coação supostamente sofrida pelo embargante, considero-a nula. Apesar do ordenamento jurídico proteger a condição de nascituro, ela depende da fecundação e, a partir de então, pode se considerar que há um individuo com direitos protegidos, embora sem personalidade. Não havia, pois, a existência do individuo Zé Ninguém na realização do contrato. Evidentemente, se o individuo não existia, ele não poderia ter sido coagido.

                                Aceitar o argumento de possível coação levar-nos-ia ao absurdo de considerar que todas as pessoas são coagidas no momento da fecundação nos diversos aspectos de sua existência, como classe social, cor. A fecundação seria como uma loteria natural, e haveria uma desigualdade intrínseca a toda a sociedade.

                              Sabidamente isto não ocorre. Vivemos em uma sociedade onde todos têm direitos iguais, e o fato do embargante não ter obtido sucesso na vida cabe exclusivamente a ele e a suas atitudes durante sua vida. As coações pré-existentes à vida estão, pois, expurgadas do ordenamento social e jurídico, como o casamento encomendado dos tempos coloniais.

                               A boa fé do embargante em relação ao produto é uma obrigação sua, que até poderia ser usada como argumento, mas entendo incabível a lide. É notório que o embargante, que já alega prejuízos tratando o bem com boa-fé, os teria em maior quantidade caso agisse de má-fé.

                               Agir com boa-fé é, pois, um benefício ao autor e a escolha mais racional possível de sua parte. Entendo, aqui, uma analogia ao suposto inverso do princípio nemo turpitudinem suam allegare potest. Deixo claro que tal entendimento dá-se apenas no caso em lide, pelos atributos a mim concedidos não vejo problema nesta pequena inversão. Iura novit curia.

                               Em relação a manifestação da embargada, entendo plausível o argumento de não ser de competência o anulação pedido. Deveria o embargado ter movido sua ação contra a Empresa Morte Rápida S/A, entretanto não o fez. É impossível à embargada aceitar a devolução do produto entregue. Impossibilium nulla est obligatio.

                               Aceito o argumento que a embargada não é responsável pelo produto entregue, visto que a obrigação jurídica da empresa acabou no nascimento. O produto foi entregue em perfeito estado, e qualquer alegação a garantia é infundada, visto clausula contratual passar tal obrigação para profissionais médicos.

                               Quanto ao modo como o embargante utiliza seu produto, como supracitado, é algo a ser resolvido pelo embargante. O Estado garante-lhe o necessário e todos os seus direitos. Seus revezes são inócuos a ação estatal. Dura lex, sed lex.

                               POR ISSO, pelas competências a mim estabelecidas e pelos argumentos e princípios supracitados, INDEFIRO o pedido de Anulação Contratual, bem como de devolução imediata do bem.

                               CONDENO o tutor do embargante a multa de 10000 unidades monetárias desta federação, por litigância de má fé ao alegar Obrigação de Fazer da embargada quando esta não existia.

                               CONDENO também o autor do processo ao pagamento das custas processuais e honorários sucumbenciais, que fixo no valor de suas pequenas felicidades diárias, visto ser este o único bem que o embargante ainda tem para oferecer.

                               TRANSLADE cópia desta sentença para os meios publicitários, para que todos os cidadãos desta Federação tomem conhecimento de seus termos.

                               PUBLIQUE-SE. REGISTRE-SE. INTIMEM-SE.

                Lugar qualquer, em uma data qualquer.

DESTINO
Juíz de Direito

* O autor ressalta que se trata de um texto fictício. Os argumentos utilizados não exprimem necessariamente a opinião do autor. 

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