Suzy acordou com o cheiro
adocicado de cookies misturado com o cheiro pontudo dos pinheiros do lado de
fora da janela. Esfregou seus pequenos olhinhos cinzas enquanto jogava para o
lado pequenos pedaços de sonhos e olhou para a luz esbranquiçada do lado de
fora. Tinha nevado durante a noite, o gramado onde costumava brincar estava
coberto por uma camada fofa de lã branca. Mal podia esperar para estar lá fora
fazendo bonecos de neve com Tobby, seu fiel amigo de quatro patas e focinho
vermelho.
Tirou
seu pijama e colocou uma roupa quente e confortável, calçou as luvas, as botas
e desceu para a cozinha. Sua mãe a recebeu com um sorriso, uma caneca de leite
e uma bandeja de cookies recém saídos do forno. Seu pai a recebeu com um
cafuné, e um convite para ir com ele comprar seu presente de natal. Aquilo a fez
lembrar-se do tempo que ainda acreditava em Papai Noel, e de como sempre
acabava adormecendo enquanto esperava o bom velhinho em frente a lareira.
Mas
a magia do natal ainda estava ali. Bastava olhar para o pequeno pinheiro
adornado no canto esquerdo da sala, repleto de bolas vermelhas, sinos, luzes e
fotos da família. O rádio da cozinha também emanava aquele refrão “Jingle bells, jingle Bells... Jingle all the
way... Oh, what fun it is to ride... In a one horse open sleigh”. Suzy
amava o natal, mas sempre tinha dificuldades em escolher um presente apenas,
havia tantos que a interessavam. Se pudesse ficaria com todos, mas nem sempre
conseguia.
Após
o café foi com seu pai para a loja de brinquedos. Ainda estava levemente
entorpecida pela quantidade de cookies e canecas de leite que havia tomado, mas
no geral estava ansiosa por aquele momento. Andou com o pai pelos corredores da
loja, analisando os brinquedos ali disponíveis: ursos, jogos de tabuleiro,
bonecas... Havia dado um ou outro sorriso ao ver determinado brinquedo, mas
nada ainda tinha atraído toda a sua atenção. Já estava quase desistindo quando
a viu no final do corredor.
Seus
olhinhos cinzas brilharam tanto que chegaram a um azul pálido. Puxou o
sobretudo do pai e disse “É aquela, papai!”. No meio da vitrine estava uma
boneca, solitária, acima das demais, quase esquecida ali pelas muitas crianças
que passavam. Não era exatamente graciosa para uma boneca, na verdade o pai não
entendeu por que aquela boneca fora colocada ali. Mas o seu lado macabro é que
chamou atenção de Suzy. “Nós seremos uma família perfeita, papai: eu, ela e
Tobby!”. O pai sorriu e foi pagar pela boneca, agora era só levar a filha para
casa e ir comprar as bebidas para a ceia, que era o que realmente importava.
Ao
chegar em casa Suzy chamou Tobby e foi brincar na neve. Em algum momento da
tarde correu na geladeira para pegar uma cenoura, roubou o cachecol da mãe
pendurado na porta e pegou alguns gravetos pelo chão do quintal. Após certo
esforço, e com as mãozinhas quase congelando, estava pronto o Senhor Noel.
Ficou ali parada ao lado dele, com Tobby aquecendo seu colo. Três testemunhas
mudas do por do sol, que aos poucos tingia a neve de um amarelo dourado. Quando
a lua sorriu para eles a mãe lhe chamou para tomar banho.
Toda
aquela água morna a fez perceber que estava com sono. Assim, após a tigela de
sopa quente de legumes adormeceu em sua cama. A noite passou num borrão,
trazendo-lhe sonhos leves e agitados. Mas a manhã seria manhã de natal, e ela
sabia que acordaria com o cheiro não de cookies, mas de panetone e carnes
assando. Acordou, seus cinzentos olhos vítreos deixavam sua visão embaçada.
Sentiu ao seu lado suas companheiras, embora não pudesse ver mais que suas
sombras. Todas com a mesma roupa, todas que sempre estavam ali para as crianças
escolherem.
Mas ela dera um pouco de sorte, pois estava
exposta um pouco acima das demais. Na verdade ela era o centro da vitrine.
Todas as crianças estavam ali para escolherem seus brinquedos, e ela dava o
máximo de si para ser escolhida por alguém. Não queria passar o natal sozinha,
por isso sempre se assegurava de ser escolhida por alguma criança que lhe
chamasse a atenção, ou, quem sabe, por algum pai que passava ali correndo para
comprar o presente da filha, embora ainda preferisse as crianças.
A
rua estava lotada, algumas velhas caras que sempre passavam ali cobiçando
aqueles brinquedos, algumas novas caras que nunca havia visto. Por todos os
cantos a música natalina se misturava com os sinos e o coro da igrejinha ao
lado. Ao seu lado, via carrinhos sendo levados por meninos risonhos, jogos de
tabuleiros sendo carregados por pequenas crianças com óculos redondos de lentes
grossas, bonecas sendo levadas por meninas não tão pequenas assim, ursinhos de
pelúcia sendo abraçados por garotos e garotas com sardinhas. Tudo estava
correndo tão bem como sempre.
Mas
de repente a viu, aquela menininha gordinha que vinha em sua direção. Olhinhos
cinza brilhando, de mãos dadas com um senhor carrancudo com um sobretudo preto.
Seu coração de boneca disparou, queria ser levada para casa por aquela
menininha. Por um breve instante excitou se seria ela a escolhida, afinal há
muito estava ali exposta a olhares e avaliações. Mas a garotinha apontou para
ela e logo o pai, com uma cara de alívio, pagou por ela. Seu mundo então ficou
escuro quando a embrulharam com aquele papel brilhante, mas logo mais poderia
brincar para valer. Assim, adormeceu aguardando pela diversão.
O
natal passou. Abriu seus olhinhos, seus braços rígidos pelo sono. Tudo estava
estranhamente silencioso. Tobby, como sempre, veio para o seu lado com aquele
focinho vermelho gelado e lambeu seu rosto. Eram uma família feliz, as duas e
Tobby. O pai e a mãe talvez nem tanto, eles não gostavam muito que olhassem
pela cortina, era melhor pensarem que eram perfeitos. Mas nada disso as
atingia, elas se davam tão bem. Porém, ela desenvolvia seu plano macabro à
medida que os dias passavam. Seria sua vingança silenciosa...
Uma
semana após o ano novo sentiu que era a hora certa. A casa estava dormindo
quando ela se levantou, afastou-se dos demais brinquedos com que dormia e a
levou pela mão. As duas logo estavam sozinhas na cozinha. Então ela pegou a
faca e enfiou naquela barriga macia, enfiou mais uma, duas, três vezes. Estava
feito. Deixou a faca de lado, passou por Tobby que ainda dormia e saiu de casa.
No dia seguinte, pela manhã, a casa acordou com o grito dos pais ao verem Suzy
morta na cozinha. Enquanto isso, do outro lado da cidade, novamente detrás
daquela vitrine, a boneca sorria para mais uma garotinha...
Nenhum comentário:
Postar um comentário